Cem Anos de Veríssimo Serrão: Uma Vida de Serviço e Lealdade
Publicado no Jornal O Diabo, a 11 de julho de 2025
Há homens cuja memória se impõe como estátua; outros, mais raros, cuja memória se entranha como presença. Joaquim Veríssimo Serrão, cujo centenário se assinala este ano, em especial no passado dia 8 de julho, pertence a essa segunda categoria. Não se impõe pela pose, mas pelo exemplo. Não se nos apresenta como figura distante, mas como alguém que poderíamos ter encontrado na rua, à saída da escola, com um livro debaixo do braço e a inquietação no olhar.
Foi precisamente esse traço — o da normalidade — que o Presidente da Câmara Municipal de Santarém, João Teixeira Leite, escolheu sublinhar no encerramento da sessão solene de homenagem, no Convento de São Francisco. E com razão: o Professor Joaquim Veríssimo Serrão não foi um prodígio de infância, nem um génio prematuro. Foi, sim, um jovem irreverente, curioso, vivo. Um estudante como tantos, mas com uma fome rara de saber. No Correio do Ribatejo de 4 de julho, Ludgero Mendes refere que Veríssimo Serrão era também boémio por Santarém, aquando da sua juventude, com Celestino Graça, por exemplo, figura que desapareceu há cinquenta anos, mas que deixou uma marca enorme na Rainha do Ribatejo. Essa sede — insaciável — moldou o historiador que viria a ser.
A história de Veríssimo Serrão cruza-se, desde cedo, com a da cidade que o viu nascer. Presidiu à Associação Académica de Santarém, organizou conferências, debates, exposições. Amava Santarém — mas não de forma passiva. Viu sempre na cidade um ponto de partida e de chegada, um lugar de pertença e de transformação. Esse amor refletia-se na forma como olhava para os monumentos, para as ruas, para a história viva das pedras e das gentes. É hoje possível andar por Santarém com um livro de Veríssimo Serrão na mão e ver a cidade com os seus olhos. Um dom raro: o de ensinar a ver.
Na base dessa visão estava uma formação sólida e aberta ao mundo. Um dos seus doutoramentos, obtido na Universidade de Toulouse, alargou-lhe o horizonte, ensinando-lhe a ler o microcosmo local à luz do macrocosmo global, através dos arquivos e não dos livros que servem de fontes secundárias. Esta dupla leitura — do próximo e do distante — marca toda a sua obra e dá-lhe a espessura dos grandes. O seu legado não se reduz a datas e a factos; é feito de sentido, de coerência, de compromisso.
Devemos tocar uma nota particularmente sensível: a da lealdade. Veríssimo Serrão foi leal aos seus princípios, aos seus amigos, à sua consciência. Num tempo de ruturas, recusou o oportunismo. Manteve-se fiel a Marcello Caetano quando tantos se apressaram a esquecer. Visitou-o no exílio, trocou com ele mais de trezentas cartas, defendeu a possibilidade de uma evolução pacífica para a democracia, aquando da governação do Presidente do Conselho. Não por nostalgia de um regime, mas por convicção de que as mudanças duradouras se constroem com raízes. Sempre disse que não pretendia “passar do 24 para o 26 de abril”, como fez Veiga Simão, que passou de Ministro da Educação para militante do Partido Socialista.
A sua lealdade custou-lhe lugares, nomeadamente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Recusou cargos, recusou o convite para ser deputado feito pelo próprio Dr. Sá Carneiro e até o convite para ser secretário de estado da cultura. Disse não, quando tantos diziam sim. Disse não, pois ser leal, para ele, era mais do que uma virtude: era uma obrigação moral. "Estar ao lado dos que vencem é fácil", afirmou um dia. "O que é nobre é estar ao lado dos vencidos." Essa nobreza, rara, atravessa toda a sua vida.
Joaquim Veríssimo Serrão não quis ser político, nem servo de ideologias. Quis ser útil à sua terra. E foi. O Instituto Politécnico de Santarém, que ajudou a fundar em 1979, não nasceu apenas de uma estratégia educativa. Nasceu de um sonho: o de criar oportunidades para os jovens escalabitanos que não podiam ir para Lisboa ou Coimbra. Um sonho com raízes, como o definiu o próprio. Um sonho que ele próprio moldou, propondo espaços, cursos, ideias. Um sonho que chamava de “embrião da Universidade do Ribatejo” — e que hoje continua por cumprir, mas não por esquecer.
Outro traço destacado na homenagem foi a prudência. Não a prudência calculista dos que temem comprometer-se, mas a prudência sábia dos que sabem quando falar, quando agir, quando esperar. Veríssimo Serrão soube sempre manter a distância certa da política partidária. Preferiu a independência do pensamento à segurança das trincheiras ideológicas. Nunca precisou de ter partido para ter ideias claras sobre o país. Foi um historiador com sentido de Estado — e isso é, por vezes, mais raro do que ser um estadista com sentido histórico.
Por fim, a crónica termina onde deve: na cidade. Veríssimo Serrão foi — e é — uma das figuras maiores da identidade escalabitana. Com Virgílio Arruda e outros ilustres e saudosos, ajudou a pensar Santarém como lugar com alma. O seu amor à cidade não era folclórico, nem provinciano, mas concreto, documentado, sentido. Não se limitava a evocar o passado: queria projetá-lo no futuro. Quis que os nossos filhos pudessem estudar cá. Quis que a cidade tivesse memória, mas também esperança.
Numa das suas cartas a Marcello Caetano, disse-lhe o que respondeu ao Ministro da Educação aquando de um contive. Escreveu: “Aceito presidir à comissão instaladora do Instituto Politécnico de Santarém, desde que o cargo não tenha conotações políticas, pois apenas pretendo ser útil à minha terra.”
Caro Prof. Veríssimo Serrão, gostaria muito que me ouvisse, e que ouvisse aqueles que o leem: há homens que nascem heróis. E há homens — mais difíceis de encontrar — que se tornam excecionais sendo simplesmente fiéis à sua normalidade. O Professor foi um desses. E por isso, cem anos depois do seu nascimento, continua a ensinar-nos. Não apenas sobre a História — mas sobre o carácter.
A sua obra não está esquecida. Por isso mesmo, saudando figuras como o Professor Doutor Martinho Vicente Rodrigues, Diretor do Centro de Investigação Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, convido todos a conhecerem o notável trabalho desenvolvido por este Centro ao longo dos últimos anos. De forma independente e com rigor científico, tem honrado, em diversas áreas do saber, a memória do Professor Veríssimo Serrão.